sábado, 4 de agosto de 2012

Poetas influenciados por Kerouac comentam o filme Na Estrada.

Em Na Estrada, filme de Walter Salles que estréia hoje, dia 13, no Brasil, um tipo de cena se repete por toda a obra (calma, não haverá qualquer sinal de spoiler): os amigos Sal e Dean saem sem rumo pelas ruas e, depois de se abastecerem de drogas, desbravam as noites dos anos 40. Na sequência, como um ciclo, tudo se transforma em jazz, sexo e poesia.



Sal, que é nada menos que o alterego de Jack Kerouac (1922 – 1969), escritor do livro que inspirou o longa-metragem, dizia que aquilo era parte de seu projeto literário. Na época com 26 anos e um exemplar de Em Busca do Tempo de Perdido embaixo do braço, ele queria vivenciar diversas e intensas experiências para poder transpô-las no papel. Só assim, sentindo na pele os fatos, afirmava, poderia escrever sobre eles.


Algo parecido ocorreria com outro grupo em São Paulo, pouco depois, nos anos 60. Roberto Piva, Antonio De Franceschi, Roberto Bicelli e Claudio Willer, chamados mais tarde de “poetas malditos”, ganharam a alcunha por levarem muito a sério essa relação entre experiência pessoal e escrita. Contra os preceitos conservadores da época, invadiam festas, roubavam livros e se envolviam numa série de, digamos assim, loucuras literárias. “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”, dizia Piva, falecido em 2010.

Os brasileiros ficaram conhecidos por continuarem a filosofia iniciada por Kerouac e seus amigos — a chamada geração beat. Esses autores americanos, que viveram entre as décadas de 40 e 60, se caracterizavam pelo estilo anárquico, por lutar pela igualdade étnica e, no campo das artes, pelo pensamento caótico e linguagem informal. Em essência, significaram uma ruptura com os padrões vigentes. Era o início de uma contracultura que daria origem a movimentos como o hippie e o punk, e que, claro, influenciaria a literatura mundial. Inclusive a nossa.
Pela ligação com a obra de Kerouac, convidamos os poetas Willer e Bicelli (De Franceschi não pôde comparecer) para avaliar se a adaptação cinematográfica é fiel ao livro homônimo, considerado, inclusive por eles, uma das obras mais importantes dos anos 40. Compareceu também Raul Fiker, professor da Unesp, estudioso do tema. Confira o que eles falaram.

Direção aprovada

Willer: “Walter Salles fez bem, principalmente considerando orçamento relativamente baixo — por isso, muitas cenas de interiores, em estúdio, que sai mais barato — mas as externas são bonitas. O filme reproduz a cultura ‘hipster’, entre a boemia e a delinqüência daquele período, virada da década de 1940 para 1950. Nos quesitos ritmo e montagem, impecável.”

Bicelli: “Walter Salles capta bem o espírito da coisa. O filme tem uma fotografia bonita, com os tons terra, o figurino é legal — em cenas de rua, dá pra ver a diferença de estilo entre os beats e os passantes —, a música abrange os vários estilos que conviviam na época, com a evidente preferência deles pelo jazz, mas sem esquecer que Kerouac, por exemplo, gostava de VicDamone.”

Fiker: “No todo, gostei. A ambientação e a reconstituição de época são perfeitas. A música, idem.”

Interpretações deixam a desejar

(Antes, um esclarecimento. Todos os personagens, assim como no livro, são heterônimos dos autores. Não usam nomes reais. O escritor Allen Ginsberg, por exemplo, que ficaria famoso anos depois do livro, tem nome de Carlo Marx.)

Willer: “O ator que faz Kerouac / Sal (Sam Riley) não convence. Kerouac foi bem documentado, sabemos como era, carismático, esse do filme achei insosso. O que faz Cassady / Moriarty (Garrett Hedlund), também, pouco ator para muito personagem. E Carlo / Ginsberg (Tom Sturridge) também está estereotipado, não era tão afetado e foi bem mais louco — e carismático. Os outros, ok. Grande Viggo Mortensen (que faz o papel de Old Bull Lee / William Burroughs), o melhor.”

Bicelli: “Os atores até que se viram bem. Kerouac é mais fraco que Moriarty, mas este poderia ser um pouco mais ‘anfetamínico’. Do jeito que está, parece mais um irmão mais velho. Contudo, gostei dele: boa estampa, olhos ‘ilumiloucos’, sorriso manhoso e tinhoso.”

Detalhes bem acertados

Willer: “Gostei de mostrar o Kerouac leitor de Proust, Céline, Joyce. De fato, levavam o volume de Proust nas viagens. Ele falando em ‘canuk’, dialeto franco-canadense com a mãe, correto, e podia ter mais.”

Bicelli: “As mulheres são gostosas e estão bem.”

O que faltou

Willer “Faltou sobre a dimensão filosófico-religiosa – Onthe Road é busca por Deus, Kerouac insistia. Declarava-se místico. Tensão entre religiosidade e esbórnia confere interesse adicional.”

Bicelli: “Acho que o culto à velocidade de Cassady / Moriarty não é bem aproveitado. Também não aparece Kerouac se deitando no chão do carro, para escapar do medo que, em certo momento, sentiu a estrada sendo devorada por aquela máquina conduzida de maneira infernal. Seria uma baita cena!”

***
Além da tela

Depois da sessão e da entrevista, perguntei a Willer qual era o significado do livro Na Estrada para sua vida, e o que esse filme representa para ele. Na resposta, fez questão de dizer que Kerouac é mais do que as pessoas acham — mais que uma literatura sem muito significado.

Concluo o longo (perdão!) relato com as palavras dele:

“Nessas 5 décadas, o que houve foi uma descoberta da grandeza literária de Kerouac. Especialmente ao avançar no estudo de gnosticismo e de misticismo e poesia. Li todo o Kerouac e acho que essa gente, críticos formalistas e tal, deveriam ler mais Kerouac antes de despejar opiniões apressadas sobre ele.”

Que o filme sirva, então, para que a obra dos beats seja analisada com maior atenção


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